domingo, 27 de novembro de 2011

Deve ser do choque

Segundo fontes anónimas, o meu pai disse isto em conversa com o homem que lhe está a fazer as obras na casa (que costumava ser minha):
- Eu sou viúvo, portanto a casa é minha por direito.

Para quem não sabe, os meus pais nunca foram casados. E mesmo que tivessem sido, separaram-se há quase 10 anos.

O meu pai está um bocadinho confuso.

sábado, 5 de novembro de 2011

Dois


- Ninguém me sabe explicar o que é a felicidade – resmungou Tiago, impaciente com o novelo de esparguete à bolonhesa poisado num prato à sua frente. A mãe estava a ficar enervada com a fúria do filho, que tentava apanhar os fios de massa sem fazer nenhum esforço aparente por suavizar o embate do garfo na loiça, provocando um ruído estridente e desafiando todas as cabeças no restaurante a virarem-se na sua direcção. Este efeito desaparecia depois das pessoas perceberem que não passava de uma criança a ser exasperante, e as atenções anteriormente dispensadas ao miúdo voltavam-se para a respectiva mãe, vestida com bom-senso num espaço cheio de fatos elegantes e boas maneiras, cada vez mais embaraçada com a terrível falta de decoro do filho.
- Tiaguinho, já lhe disse que comesse sossegado. Se conseguir comportar-se como deve ser, a mamã vai explicar-lhe tudinho acerca da - como disse?
- Da felicidade, mamã.
Ela olhou para o filho ao seu lado. Não percebia de onde vinha aquele estranho fascínio por coisas tão esquisitas. Seria das bandas desenhadas? Por via das dúvidas, decidiu, assim que chegassem a casa iria pô-lo a dormir no quarto da ama e dirigir-se-ia ao quarto dele. Pegaria em todos os exemplares de revistas e livrinhos tolos que conseguisse encontrar e pô-los-ia em cima da laje do quintal para que fossem levados de manhã pelas criadas, juntamente com o resto do lixo doméstico. A partir dali seguiria estritamente os conselhos do Dr. Martins relativamente às leituras indicadas a um rapaz como Tiago. «Introduza lentamente os clássicos da literatura, portuguesa e estrangeira; comece com pequenos sonetos de Camões e vá aumentando a exigência. Talvez daqui a três meses já lhe possa mostrar o primeiro ensaio filosófico. Tenha sempre presente que é necessária uma cultura da exigência, acima de tudo o mais. Lembre-se disso, e o menino será um génio.». Ela não se tinha esquecido desta conversa.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Saber perdoar.


Aqueles que me fizeram sofrer não são, nem nunca serão, indiferentes para mim, pela simples razão de termos algo em comum que dificilmente compete com gostos musicais semelhantes ou ideologias compatíveis: a certeza de um passado partilhado. Essa certeza prender-me-á para sempre a estas pessoas, pois nunca serei capaz de as esquecer. Isso torna-me incapaz de fingir que elas não existem, o que até pode ser verdade na medida em que não as deixo entrar na minha vida da mesma maneira que deixava (isto é, sem dúvida, sensato), mas é também falso, tendo em conta que elas podem não existir na minha vida, mas sei que estão vivas, e que vivem sem mim, rodeados de outras pessoas… Mas, mais importante que tudo isso, elas já fizeram parte da minha vida, e é o tal passado do qual eu não posso (nem devo) esconder-me, que faz com que a única solução para eu conseguir viver comigo mesma, com os meus erros e com os erros dos outros, seja aprender a perdoar, e ainda mais importante do que seguir em frente é conseguir lidar com aquilo que sinto de maneira a que, para me confortar, não precise de mentir a mim mesma dizendo que certa pessoa me é indiferente quando, na verdade, está longe de o ser. O desprezo pode resultar com quem nunca me desiludiu, mas nunca com pessoas em quem confiei. Desta forma estou a falsear a realidade, a atribuir importâncias falsas a eventos que me marcaram. Para conseguir sentir-me bem com o meu passado, o que tenho de fazer é encarar a realidade bem de frente, e para isso não basta chegar à “brilhante” conclusão de que me magoaram. Saberei que atingi o meu objectivo quando, um dia, me encontrar na mesma sala com o meu pai, a minha avó ou o Henrique, e for capaz de admitir para comigo mesma que me sinto mal, que tenho borboletas no estômago, que quero sair dali, mas que, apesar de tudo isso, também sei que tenho de ser superior e ir ter com eles, cumprimentá-los educadamente, e mostrar-lhes que não têm de derrubar nenhuma barreira para chegarem até mim, pois eu já baixei todos os muros defensivos. Já não tenho nada a esconder, posso dizer-lhes que tenho medo, que sinto vontade de chorar, que gostava que as coisas tivessem sido diferentes. Assim, não terão nada a usar contra mim a não ser as minhas próprias palavras, e ninguém me pode abater com a verdade, pois ela está do meu lado, e quando não estiver, admiti-lo-ei. Se tiver de cair, cairei. Mas o peso de saber que não fiz o suficiente já não estará lá.