Não é todos os dias que se tem o privilégio de ouvir uma das vozes mais activas e experientes na mudança educacional em Portugal e no Brasil. José Pacheco é, sem qualquer dúvida, um excelente pedagogo. O projecto da Escola da Ponte é a prova viva disso. No entanto, depois de vir da conferência organizada pela APAS na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, acabei por passar o dia a relembrar alguns aspectos muito problemáticos na forma como o problema da educação contemporânea foi abordado, tanto pela maior parte dos membros da plateia, como pelo próprio orador, um professor versado na área das ciências sociais e cognitivas.
Um aspecto unia todas as pessoas que
foram assistir à conferência, desde pais decepcionados com os métodos e com as
consequências do ensino convencional, a professores desesperados e com falta de
motivação profissional: a certeza de que a escola não está bem como está, e tem
de mudar. Mas é a partir daqui que começam a dizer-se disparates apriorísticos
que, na minha opinião, são perfeitamente compreensíveis dada a natureza emotiva
do tema em questão, mas que poderiam perfeitamente ter sido evitados e
contraditos pelo orador.
O sistema educativo foi desenhado
para seleccionar – ou seja, admitir alguns e excluir outros. É este o modelo
que herdámos do século XIX, um modelo que privilegia saberes de um determinado
tipo e que desempenha um papel de reprodução das desigualdades sociais de
origem: nisto não vou elaborar, há estudos suficientes e diversificados a esse
respeito. Ora, a única forma de um sistema deste tipo se manter de pé e durar
centenas de anos é sendo altamente centralizado e controlado burocraticamente
por um Estado que tem algo a ganhar com a manutenção deste status quo. Isto é verificável no mundo real por qualquer pai ou
aluno que esteja minimamente por dentro do funcionamento de uma escola pública:
os professores têm de dar provas de tudo, preencher papeladas infindáveis e dar
as aulas de acordo com o programa curricular – porque quando um professor tenta
improvisar um bocadinho para tornar as aulas mais didácticas e facilitar a
aprendizagem dos conteúdos, cai-lhe logo o conselho pedagógico em cima e
culpabiliza-se o professor por não preparar adequadamente os alunos para os
momentos de avaliação como, por exemplo, os exames nacionais.
Quando o José Pacheco, que admiro
profundamente pelo legado prático que nos deixa, diz a uma plateia de pais,
professores e alunos, que a mudança está ao alcance de todos e que passa por
cada um de nós, não posso deixar de torcer o nariz. Infelizmente, sou uma
pessimista metodológica. Não acho que a responsabilidade pela erradicação da
“má educação” esteja nos ombros de cada professor individualmente. Acho que os
professores já têm demasiada coisa aos ombros posta pelo Ministério da Educação
e por toda a comunidade escolar. O professor esqueceu que as escolas normais
não são a Escola da Ponte. O professor utilizou exemplos demasiado concretos e
situados no contexto para justificar a sua crença no poder individual dos
professores. O professor disse que “a teoria nunca antecede a prática”,
afirmação traiçoeira e atrever-me-ia a dizer infiel, já que duvido que sem ter
lido Paulo Freire, Pierre Bourdieu e Michel Foucault, um projecto como a Escola
da Ponte tivesse vindo a existir e a manter-se durante mais de 20 anos. O
professor culpou os pais que são obrigados a pôr os filhos na pré-primária por
trabalharem durante o dia, dizendo que eles podem perfeitamente mudar de horário.
O professor esqueceu-se portanto que a maioria dos pais trabalha arduamente em
empregos cujo horário não é flexível, e cujos postos de trabalho são precários
ou substituíveis.
Sem que seja essa a intenção, o que este
tipo de discursos acaba por fazer é algo absolutamente contra-produtivo a longo
prazo: culpabilizar os pais que fazem o melhor que podem e deslocar a
responsabilidade do Estado para os ombros dos professores acaba por coincidir
com ideologias altamente reaccionárias, e obviamente que não desprezando a
importância – e urgência – de alternativas ao modelo educativo existente, penso
que ninguém acredita que todo o sistema de ensino mude a partir destas
experiências. No geral fiquei decepcionada com o discurso do orador: demasiado
empirista e demasiado optimista. Apesar de me ter emocionado, de me ter rido,
de achar que o José Pacheco é uma inspiração para qualquer pessoa que se
interesse por mudar a educação, parece-me que faltou ali uma boa dose de
realismo: para se mudar verdadeiramente a educação, é preciso mudar-se o mundo.