sábado, 31 de março de 2012

Arte e Sexismo



Borgore faz música. No entanto recuso chamar-lhe músico, e muito menos artista. Não sou daquelas pessoas que vê um quadro de nus e afirma peremptoriamente que “aquilo não é arte”. Pelo contrário, sou mais daquelas pessoas que vê uma fotografia chocante, visualmente (ou eticamente) perturbadora, e lhe dá o benefício da dúvida. A Arte, se é que se pode escrever arte com letra grande, como se fosse algo unânime ou elementar, deve ser relativizada. Uma escultura dadaísta faria sentido na Itália renascentista?

Tal como é insensato pensar a arte como uma coisa intemporal e incontroversa, é igualmente errado admitir que tudo seja arte. O que Franz Marc fez com os seus cavalos vermelhos e azuis foi precisamente uma crítica à sociedade da época, misturada obviamente com alguma moral consensual nos círculos intelectuais do expressionismo alemão. Ainda assim, o que na minha opinião ressalta na verdadeira obra de arte moderna e contemporânea é precisamente a capacidade de contradição. De quê? Fácil. Da moral dominante. Dos preconceitos manifestos e latentes. Do pensamento linear característico do senso-comum. A arte é, pois, quase sempre, uma expressão original de moralidade.

O artista ocupa uma posição privilegiada. Tem a oportunidade de se colocar em questão, face a si, à sua obra e aos seus esquemas de pensamento. O que se vê na indústria musical de hoje é, pelo contrário, uma exploração até ao absurdo dos preconceitos e estereótipos dominantes na sociedade ocidental. O tratamento da mulher como objecto sexual é uma das constantes dos singles produzidos às três pancadas, e mesmo de algumas bandas e movimentos que se apresentam como a “resistência” à comercialização musical.

As letras das músicas mais populares entre os consumidores retractam, muitas vezes, as mulheres como seres de natureza dupla: senhoras durante o dia, devoradoras insaciáveis à noite. Este estereótipo em particular dá continuidade à necessidade estrutural de existirem dois tipos de mulheres, facilmente identificáveis e tratáveis. Por um lado, as puras, doces, brandas, devotadas ao casamento, aos filhos e aos sentimentos: o tipo de mulher com quem se casa, portanto. Por outro lado, aquelas que segundo as palavras de muitos homens, “não se dão ao respeito”, ou porque têm uma vida sexual activa e não o escondem, ou porque aparentam ter pela maneira como se vestem, falam ou lidam com as pessoas no geral. Estas últimas são as putas, que no universo masculino apenas servem para satisfazer os desejos mais viscerais da carne, que segundo a própria Bíblia, “é fraca”, e que no universo feminino são estigmatizadas. A sociedade tal como existe precisa de ambos os tipos de mulheres para funcionar, ou seja, para que os homens tenham ao seu dispor mulheres-objecto-sexual e mulheres-objecto-ideal.



Vê-se como tão facilmente a música reproduz esquemas tradicionais de dominação da mulher pelo homem. Hoje em dia, a questão já não passa tanto por um reconhecimento legal da igualdade da mulher perante o homem; o problema afigura-se maior quando tentamos desconstruir o senso-comum machista, presente em todas as áreas de socialização, e profundamente enraizado no subconsciente colectivo. Há mesmo uma assimilação inconsciente por parte das próprias mulheres da sua inferioridade, embora elas não pensem nela desta forma e até a justifiquem, afirmando-se elas próprias como representantes da minoria respeitável. Muitas vezes, são as mulheres as primeiras a rotularem-se umas às outras com adjectivos que expressam esta natureza extremamente reducionista do mundo: ou se é isto, ou não se é.

Dito isto, é fácil compreender por que razão me parece um insulto à arte chamar Borgore artista ou músico. O que ele faz é um simples papaguear da “cantiga” que lhe foi cantada toda a vida. Nenhum dos seus versos convida à reflexividade ou demonstra qualquer tentativa de autoquestionamento. Para ele, o mundo é o mesmo hoje e sempre, as suas palavras são apenas divertimento, e a política só se faz no parlamento.
Apesar de achar que nem todo o artista é obrigado a comprometer a sua arte com posicionamentos políticos, acho que qualquer um deve saber reconhecer que eles estão inexoravelmente presentes na sua obra. Borgore assume-se, portanto, como um típico macho sexista… versão século XXI.