segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Mudar a Escola para mudar a sociedade? - Conferência com José Pacheco


Não é todos os dias que se tem o privilégio de ouvir uma das vozes mais activas e experientes na mudança educacional em Portugal e no Brasil. José Pacheco é, sem qualquer dúvida, um excelente pedagogo. O projecto da Escola da Ponte é a prova viva disso. No entanto, depois de vir da conferência organizada pela APAS na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, acabei por passar o dia a relembrar alguns aspectos muito problemáticos na forma como o problema da educação contemporânea foi abordado, tanto pela maior parte dos membros da plateia, como pelo próprio orador, um professor versado na área das ciências sociais e cognitivas.
            Um aspecto unia todas as pessoas que foram assistir à conferência, desde pais decepcionados com os métodos e com as consequências do ensino convencional, a professores desesperados e com falta de motivação profissional: a certeza de que a escola não está bem como está, e tem de mudar. Mas é a partir daqui que começam a dizer-se disparates apriorísticos que, na minha opinião, são perfeitamente compreensíveis dada a natureza emotiva do tema em questão, mas que poderiam perfeitamente ter sido evitados e contraditos pelo orador.
            O sistema educativo foi desenhado para seleccionar – ou seja, admitir alguns e excluir outros. É este o modelo que herdámos do século XIX, um modelo que privilegia saberes de um determinado tipo e que desempenha um papel de reprodução das desigualdades sociais de origem: nisto não vou elaborar, há estudos suficientes e diversificados a esse respeito. Ora, a única forma de um sistema deste tipo se manter de pé e durar centenas de anos é sendo altamente centralizado e controlado burocraticamente por um Estado que tem algo a ganhar com a manutenção deste status quo. Isto é verificável no mundo real por qualquer pai ou aluno que esteja minimamente por dentro do funcionamento de uma escola pública: os professores têm de dar provas de tudo, preencher papeladas infindáveis e dar as aulas de acordo com o programa curricular – porque quando um professor tenta improvisar um bocadinho para tornar as aulas mais didácticas e facilitar a aprendizagem dos conteúdos, cai-lhe logo o conselho pedagógico em cima e culpabiliza-se o professor por não preparar adequadamente os alunos para os momentos de avaliação como, por exemplo, os exames nacionais.
            Quando o José Pacheco, que admiro profundamente pelo legado prático que nos deixa, diz a uma plateia de pais, professores e alunos, que a mudança está ao alcance de todos e que passa por cada um de nós, não posso deixar de torcer o nariz. Infelizmente, sou uma pessimista metodológica. Não acho que a responsabilidade pela erradicação da “má educação” esteja nos ombros de cada professor individualmente. Acho que os professores já têm demasiada coisa aos ombros posta pelo Ministério da Educação e por toda a comunidade escolar. O professor esqueceu que as escolas normais não são a Escola da Ponte. O professor utilizou exemplos demasiado concretos e situados no contexto para justificar a sua crença no poder individual dos professores. O professor disse que “a teoria nunca antecede a prática”, afirmação traiçoeira e atrever-me-ia a dizer infiel, já que duvido que sem ter lido Paulo Freire, Pierre Bourdieu e Michel Foucault, um projecto como a Escola da Ponte tivesse vindo a existir e a manter-se durante mais de 20 anos. O professor culpou os pais que são obrigados a pôr os filhos na pré-primária por trabalharem durante o dia, dizendo que eles podem perfeitamente mudar de horário. O professor esqueceu-se portanto que a maioria dos pais trabalha arduamente em empregos cujo horário não é flexível, e cujos postos de trabalho são precários ou substituíveis.

            Sem que seja essa a intenção, o que este tipo de discursos acaba por fazer é algo absolutamente contra-produtivo a longo prazo: culpabilizar os pais que fazem o melhor que podem e deslocar a responsabilidade do Estado para os ombros dos professores acaba por coincidir com ideologias altamente reaccionárias, e obviamente que não desprezando a importância – e urgência – de alternativas ao modelo educativo existente, penso que ninguém acredita que todo o sistema de ensino mude a partir destas experiências. No geral fiquei decepcionada com o discurso do orador: demasiado empirista e demasiado optimista. Apesar de me ter emocionado, de me ter rido, de achar que o José Pacheco é uma inspiração para qualquer pessoa que se interesse por mudar a educação, parece-me que faltou ali uma boa dose de realismo: para se mudar verdadeiramente a educação, é preciso mudar-se o mundo. 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

“A Antropologia e a questão disciplinar” – pensar o lobby sociológico


Foucault escreveu acerca da divisão disciplinar no seio das ciências – particularmente, das ciências sociais – dizendo o seguinte: "The disciplines characterize, classify, specialize; they distribute along a scale, around a norm, hierarchize individuals in relation to one another and, if necessary, disqualify and invalidate." (Foucault, 1975/1979, p 223). Fiel àquele que é o foco teórico do autor, isto é, as desigualdades sociais e as relações de poder que elas servem, a sua visão da especialização científica é coerente com o papel que atribui às instituições sociais, de entre as quais a ciência não parece escapar incólume. De facto, a ciência é uma actividade social, produzida por seres humanos, sendo portanto um campo de combate tal como qualquer outro campo social.
No contexto português, qualquer estudante das ciências sociais e humanas há-de ser confrontado, na sua trajectória académica, com a realidade do monopólio científico-institucional detido pela sociologia enquanto disciplina científica, em detrimento de outras áreas como a ciência política e a antropologia. Isto é visível através de uma simples análise dos currículos lectivos, dos autores citados para as unidades curriculares, e até mesmo da área de proveniência dos professores das disciplinas anteriormente mencionadas: como em todos os campos sociais, também na ciência as diferentes áreas estão conotadas a lugares-comuns, preconceitos ou definições apriorísticas daquilo que servem e de qual é a sua utilidade prática.
Aqui, a sociologia tem saído claramente como vencedora: o discurso reinante é o da versatilidade dos sociólogos, a sua fácil adaptação a quase todos os contextos empresariais, o seu ‘holismo inerente’, a sua utilidade indiscutível (utilidade, para quê e para quem, já é mais discutível). Já os politólogos estão por definição confinados ao estudo das instituições políticas e dos movimentos sociais, ao passo que os antropólogos dificilmente se afastam, aos olhos do resto do mundo, da imagem de “estudantes do exótico”, estereótipo que no entanto já desde a primeira metade do século passado se vem negando com o surgimento de estudos antropológicos em países ocidentais e em contextos urbanos. A definição do papel da antropologia no seio das ciências sociais, bem como a hegemonia da sociologia e dos sociólogos no panorama da especialização disciplinar, é, pois, assunto de importante esclarecimento, que Pina Cabral aborda no artigo “A Antropologia e a Questão Disciplinar” (1998).
            Para o autor, o que despoletou a escrita deste artigo foi não apenas a genuína ignorância de alguns (entre eles, de certo, estudantes) relativamente à história e à contribuição da antropologia para todas as ciências sociais, mas muito mais o “corporativismo descarado” de cientistas tão importantes, informados e influentes como Anthony Giddens, na afirmação que fez acerca da antropologia, que por oposição à sociologia constitui “an evaporating subject matter”, tendo pouca relevância na sua originalidade metodológica e teórica. Em si, esta afirmação incorpora todos os preconceitos contra a antropologia que circulam dentro e fora da academia, e é tão mais gravosa por ter sido feita por um dos académicos mais internacionais da actualidade que, ironicamente ou não, é sociólogo.
            Para desmontar estas acusações, e fazendo uma defesa crítica da antropologia, o autor baseia a sua argumentação em cinco problemáticas: i) a história da disciplina; ii) a evolução da definição do seu objecto de estudo e as suas causas; iii) a originalidade teórico-metodológica e o valor da sua contribuição para as outras ciências sociais e humanas; iv) a velha querela metodológica entre análise quantitativa e qualitativa; v) a profissionalização da disciplina e as suas consequências dentro e fora da academia. O problema do lobby sociológico é transversal a todos os pontos abordados.
           
            A contextualização histórica da antropologia é fundamental para perceber o estereótipo das ‘sociedades primitivas’, que são sempre conotadas como objecto de estudo primordial – se não único – da disciplina. Para já, Pina Cabral lembra que, etimologicamente, a palavra ‘antropologia’ designa um objecto de estudo que reflecte o desígnio original da disciplina: ser um “projecto científico utópico” que agregasse todas as ciências do ‘homem’ (1998:1083). Depois da absoluta especialização das ciências sociais, ainda na primeira metade do século XX, este objectivo tornou-se obsoleto e irrealizável. A busca de conhecimento acerca dos povos colonizados pelas potências ocidentais, nomeadamente pelos estados nacionais e por agentes económicos privados, proporcionou à antropologia uma oportunidade de amadurecimento e desenvolvimento; no entanto, esta procura estava à partida minada por interesses não só económicos, mas também político-ideológicos de manutenção da supremacia europeia nas colónias. A desacreditação da perspectiva evolucionista do desenvolvimento humano pôs em causa o objecto de estudo da antropologia ao desconstruir o sujeito de estudo: será legítimo o conceito de ‘sociedades primitivas’? Desde sempre a antropologia aplicou os seus métodos e desenvolveu teorias em diversos âmbitos, pelo que o autor afirma, justificadamente, que a divisão do trabalho científico segundo temáticas de estudo não faz sentido para a antropologia ou para qualquer outra ciência social.
            Quanto à acusação que postula a banalidade metodológica da antropologia, Pina Cabral enumera uma série de aspectos nos quais a antropologia foi pioneira, nomeadamente para o desenvolvimento de teorias e métodos de estudo qualitativos hoje totalmente açambarcados pela sociologia e naturalizados pelos sociólogos na sua prática. O autor denuncia também o branqueamento histórico de Giddens, que decide ignorar o contexto científico de autores como Engels, Durkheim e mesmo Bourdieu, que não se assumiam exclusivamente enquanto sociólogos – ou porque na sua época a divisão científica ainda não estava concretizada, ou porque a sua formação foi multidisciplinar e holística.
            A antropologia foi, como já se referiu, pioneira na formulação e aplicação de metodologias qualitativas. Estas reflectem uma maior preocupação com a diferenciação étnico-cultural – é possível argumentar, como faz Pina Cabral, que este foco menos quantitativo permite um maior afastamento face às necessidades dos poderes institucionais, ao contrário de disciplinas como a sociologia ou a ciência política. No entanto, não é verdade que historicamente a antropologia não tenha sido conivente com a legitimação de certas visões do mundo – nomeadamente etnocêntricas, com propósitos imperialistas e de justificação da supremacia da raça branca; segundo o autor, a principal diferença entre a antropologia e a sociologia de hoje, nomeadamente no que diz respeito à sua adaptação institucional, deriva de uma prioridade da primeira em estudar os grupos e as sociedades do ponto de vista dos próprios, e não a partir de uma “agenda política e social definida a partir dos interesses dos que controlam os mass media e as agências governamentais” (1998:1088). Daí a importância de colocar a questão “Útil para quem? E sobre que circunstâncias?” antes de classificar a antropologia como uma disciplina com pouca aplicação prática por oposição à sociologia. Apesar desta defesa das virtudes do qualitativismo, o autor admite que a contextualização dos ambientes de estudo em termos estatísticos é importante para garantir a solidez das observações e das conclusões retiradas. Descodificamos assim mais um mito da antropologia: o de que os antropólogos não trabalham com números ou que os acham dispensáveis.
             Por fim, coloca-se a questão da profissionalização da antropologia. Mais uma vez, a facilidade adaptativa das agendas políticas de certas ciências (como a sociologia) em comparação com outras (antropologia) é um factor determinante, mas Pina Cabral refere também a função de autopromoção desempenhada pelas ciências sociais juntos das entidades empregadoras nas últimas décadas: a formação académica é um produto, e algumas são mais passíveis de passarem no teste da economia de mercado do que outras, tanto por motivos ideológicos como propagandísticos. O lobby político, académico e institucional da sociologia tem vencido até agora a luta pela credibilização social da ciência, em detrimento da antropologia: a falta de perspectivas dos alunos preocupa o autor. Pina Cabral critica ainda a escolha feita pela maioria das faculdades portuguesas, ao darem preferência a uma formação antropológica orientada para a museologia etnológica. Trata-se de um campo relativamente árido em ofertas de emprego e que, para além disso, contribui para a propagação do estereótipo antropológico mais comum e para a continuidade de uma divisão teórica obsoleta entre antropologia ‘at home’ e ‘do exótico’, afastando portanto logo à partida muitos alunos de possibilidades profissionais mais variadas e com um olhar para a realidade menos fraccionado.
            Fica claro, depois de ler este texto, que a antropologia teve e tem muitos contributos a dar na compreensão do mundo, bem como na actuação prática para a sua transformação. Resta solucionar a luta interna dentro da própria ciência: entre a concepção saudosista mistificadora do objecto de estudo considerado ‘original’ e ‘verdadeiro’ da antropologia, e um olhar menos reducionista que considera a totalidade da realidade social como objecto de estudo viável. Acima de tudo, é importante dirigir um olhar histórico para as ciências sociais que contextualize e desmistifique os preconceitos contra as outras ciências, principalmente devido à tentação de colocar a nossa área disciplinar acima das outras em termos da sua importância absoluta. 

Bibliografia: Cabral, João de Pina (1998), A antropologia e a questão disciplinar, Análise Social, 149 (5), pp. 1081-1092.