segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Mudar a Escola para mudar a sociedade? - Conferência com José Pacheco


Não é todos os dias que se tem o privilégio de ouvir uma das vozes mais activas e experientes na mudança educacional em Portugal e no Brasil. José Pacheco é, sem qualquer dúvida, um excelente pedagogo. O projecto da Escola da Ponte é a prova viva disso. No entanto, depois de vir da conferência organizada pela APAS na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, acabei por passar o dia a relembrar alguns aspectos muito problemáticos na forma como o problema da educação contemporânea foi abordado, tanto pela maior parte dos membros da plateia, como pelo próprio orador, um professor versado na área das ciências sociais e cognitivas.
            Um aspecto unia todas as pessoas que foram assistir à conferência, desde pais decepcionados com os métodos e com as consequências do ensino convencional, a professores desesperados e com falta de motivação profissional: a certeza de que a escola não está bem como está, e tem de mudar. Mas é a partir daqui que começam a dizer-se disparates apriorísticos que, na minha opinião, são perfeitamente compreensíveis dada a natureza emotiva do tema em questão, mas que poderiam perfeitamente ter sido evitados e contraditos pelo orador.
            O sistema educativo foi desenhado para seleccionar – ou seja, admitir alguns e excluir outros. É este o modelo que herdámos do século XIX, um modelo que privilegia saberes de um determinado tipo e que desempenha um papel de reprodução das desigualdades sociais de origem: nisto não vou elaborar, há estudos suficientes e diversificados a esse respeito. Ora, a única forma de um sistema deste tipo se manter de pé e durar centenas de anos é sendo altamente centralizado e controlado burocraticamente por um Estado que tem algo a ganhar com a manutenção deste status quo. Isto é verificável no mundo real por qualquer pai ou aluno que esteja minimamente por dentro do funcionamento de uma escola pública: os professores têm de dar provas de tudo, preencher papeladas infindáveis e dar as aulas de acordo com o programa curricular – porque quando um professor tenta improvisar um bocadinho para tornar as aulas mais didácticas e facilitar a aprendizagem dos conteúdos, cai-lhe logo o conselho pedagógico em cima e culpabiliza-se o professor por não preparar adequadamente os alunos para os momentos de avaliação como, por exemplo, os exames nacionais.
            Quando o José Pacheco, que admiro profundamente pelo legado prático que nos deixa, diz a uma plateia de pais, professores e alunos, que a mudança está ao alcance de todos e que passa por cada um de nós, não posso deixar de torcer o nariz. Infelizmente, sou uma pessimista metodológica. Não acho que a responsabilidade pela erradicação da “má educação” esteja nos ombros de cada professor individualmente. Acho que os professores já têm demasiada coisa aos ombros posta pelo Ministério da Educação e por toda a comunidade escolar. O professor esqueceu que as escolas normais não são a Escola da Ponte. O professor utilizou exemplos demasiado concretos e situados no contexto para justificar a sua crença no poder individual dos professores. O professor disse que “a teoria nunca antecede a prática”, afirmação traiçoeira e atrever-me-ia a dizer infiel, já que duvido que sem ter lido Paulo Freire, Pierre Bourdieu e Michel Foucault, um projecto como a Escola da Ponte tivesse vindo a existir e a manter-se durante mais de 20 anos. O professor culpou os pais que são obrigados a pôr os filhos na pré-primária por trabalharem durante o dia, dizendo que eles podem perfeitamente mudar de horário. O professor esqueceu-se portanto que a maioria dos pais trabalha arduamente em empregos cujo horário não é flexível, e cujos postos de trabalho são precários ou substituíveis.

            Sem que seja essa a intenção, o que este tipo de discursos acaba por fazer é algo absolutamente contra-produtivo a longo prazo: culpabilizar os pais que fazem o melhor que podem e deslocar a responsabilidade do Estado para os ombros dos professores acaba por coincidir com ideologias altamente reaccionárias, e obviamente que não desprezando a importância – e urgência – de alternativas ao modelo educativo existente, penso que ninguém acredita que todo o sistema de ensino mude a partir destas experiências. No geral fiquei decepcionada com o discurso do orador: demasiado empirista e demasiado optimista. Apesar de me ter emocionado, de me ter rido, de achar que o José Pacheco é uma inspiração para qualquer pessoa que se interesse por mudar a educação, parece-me que faltou ali uma boa dose de realismo: para se mudar verdadeiramente a educação, é preciso mudar-se o mundo. 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

“A Antropologia e a questão disciplinar” – pensar o lobby sociológico


Foucault escreveu acerca da divisão disciplinar no seio das ciências – particularmente, das ciências sociais – dizendo o seguinte: "The disciplines characterize, classify, specialize; they distribute along a scale, around a norm, hierarchize individuals in relation to one another and, if necessary, disqualify and invalidate." (Foucault, 1975/1979, p 223). Fiel àquele que é o foco teórico do autor, isto é, as desigualdades sociais e as relações de poder que elas servem, a sua visão da especialização científica é coerente com o papel que atribui às instituições sociais, de entre as quais a ciência não parece escapar incólume. De facto, a ciência é uma actividade social, produzida por seres humanos, sendo portanto um campo de combate tal como qualquer outro campo social.
No contexto português, qualquer estudante das ciências sociais e humanas há-de ser confrontado, na sua trajectória académica, com a realidade do monopólio científico-institucional detido pela sociologia enquanto disciplina científica, em detrimento de outras áreas como a ciência política e a antropologia. Isto é visível através de uma simples análise dos currículos lectivos, dos autores citados para as unidades curriculares, e até mesmo da área de proveniência dos professores das disciplinas anteriormente mencionadas: como em todos os campos sociais, também na ciência as diferentes áreas estão conotadas a lugares-comuns, preconceitos ou definições apriorísticas daquilo que servem e de qual é a sua utilidade prática.
Aqui, a sociologia tem saído claramente como vencedora: o discurso reinante é o da versatilidade dos sociólogos, a sua fácil adaptação a quase todos os contextos empresariais, o seu ‘holismo inerente’, a sua utilidade indiscutível (utilidade, para quê e para quem, já é mais discutível). Já os politólogos estão por definição confinados ao estudo das instituições políticas e dos movimentos sociais, ao passo que os antropólogos dificilmente se afastam, aos olhos do resto do mundo, da imagem de “estudantes do exótico”, estereótipo que no entanto já desde a primeira metade do século passado se vem negando com o surgimento de estudos antropológicos em países ocidentais e em contextos urbanos. A definição do papel da antropologia no seio das ciências sociais, bem como a hegemonia da sociologia e dos sociólogos no panorama da especialização disciplinar, é, pois, assunto de importante esclarecimento, que Pina Cabral aborda no artigo “A Antropologia e a Questão Disciplinar” (1998).
            Para o autor, o que despoletou a escrita deste artigo foi não apenas a genuína ignorância de alguns (entre eles, de certo, estudantes) relativamente à história e à contribuição da antropologia para todas as ciências sociais, mas muito mais o “corporativismo descarado” de cientistas tão importantes, informados e influentes como Anthony Giddens, na afirmação que fez acerca da antropologia, que por oposição à sociologia constitui “an evaporating subject matter”, tendo pouca relevância na sua originalidade metodológica e teórica. Em si, esta afirmação incorpora todos os preconceitos contra a antropologia que circulam dentro e fora da academia, e é tão mais gravosa por ter sido feita por um dos académicos mais internacionais da actualidade que, ironicamente ou não, é sociólogo.
            Para desmontar estas acusações, e fazendo uma defesa crítica da antropologia, o autor baseia a sua argumentação em cinco problemáticas: i) a história da disciplina; ii) a evolução da definição do seu objecto de estudo e as suas causas; iii) a originalidade teórico-metodológica e o valor da sua contribuição para as outras ciências sociais e humanas; iv) a velha querela metodológica entre análise quantitativa e qualitativa; v) a profissionalização da disciplina e as suas consequências dentro e fora da academia. O problema do lobby sociológico é transversal a todos os pontos abordados.
           
            A contextualização histórica da antropologia é fundamental para perceber o estereótipo das ‘sociedades primitivas’, que são sempre conotadas como objecto de estudo primordial – se não único – da disciplina. Para já, Pina Cabral lembra que, etimologicamente, a palavra ‘antropologia’ designa um objecto de estudo que reflecte o desígnio original da disciplina: ser um “projecto científico utópico” que agregasse todas as ciências do ‘homem’ (1998:1083). Depois da absoluta especialização das ciências sociais, ainda na primeira metade do século XX, este objectivo tornou-se obsoleto e irrealizável. A busca de conhecimento acerca dos povos colonizados pelas potências ocidentais, nomeadamente pelos estados nacionais e por agentes económicos privados, proporcionou à antropologia uma oportunidade de amadurecimento e desenvolvimento; no entanto, esta procura estava à partida minada por interesses não só económicos, mas também político-ideológicos de manutenção da supremacia europeia nas colónias. A desacreditação da perspectiva evolucionista do desenvolvimento humano pôs em causa o objecto de estudo da antropologia ao desconstruir o sujeito de estudo: será legítimo o conceito de ‘sociedades primitivas’? Desde sempre a antropologia aplicou os seus métodos e desenvolveu teorias em diversos âmbitos, pelo que o autor afirma, justificadamente, que a divisão do trabalho científico segundo temáticas de estudo não faz sentido para a antropologia ou para qualquer outra ciência social.
            Quanto à acusação que postula a banalidade metodológica da antropologia, Pina Cabral enumera uma série de aspectos nos quais a antropologia foi pioneira, nomeadamente para o desenvolvimento de teorias e métodos de estudo qualitativos hoje totalmente açambarcados pela sociologia e naturalizados pelos sociólogos na sua prática. O autor denuncia também o branqueamento histórico de Giddens, que decide ignorar o contexto científico de autores como Engels, Durkheim e mesmo Bourdieu, que não se assumiam exclusivamente enquanto sociólogos – ou porque na sua época a divisão científica ainda não estava concretizada, ou porque a sua formação foi multidisciplinar e holística.
            A antropologia foi, como já se referiu, pioneira na formulação e aplicação de metodologias qualitativas. Estas reflectem uma maior preocupação com a diferenciação étnico-cultural – é possível argumentar, como faz Pina Cabral, que este foco menos quantitativo permite um maior afastamento face às necessidades dos poderes institucionais, ao contrário de disciplinas como a sociologia ou a ciência política. No entanto, não é verdade que historicamente a antropologia não tenha sido conivente com a legitimação de certas visões do mundo – nomeadamente etnocêntricas, com propósitos imperialistas e de justificação da supremacia da raça branca; segundo o autor, a principal diferença entre a antropologia e a sociologia de hoje, nomeadamente no que diz respeito à sua adaptação institucional, deriva de uma prioridade da primeira em estudar os grupos e as sociedades do ponto de vista dos próprios, e não a partir de uma “agenda política e social definida a partir dos interesses dos que controlam os mass media e as agências governamentais” (1998:1088). Daí a importância de colocar a questão “Útil para quem? E sobre que circunstâncias?” antes de classificar a antropologia como uma disciplina com pouca aplicação prática por oposição à sociologia. Apesar desta defesa das virtudes do qualitativismo, o autor admite que a contextualização dos ambientes de estudo em termos estatísticos é importante para garantir a solidez das observações e das conclusões retiradas. Descodificamos assim mais um mito da antropologia: o de que os antropólogos não trabalham com números ou que os acham dispensáveis.
             Por fim, coloca-se a questão da profissionalização da antropologia. Mais uma vez, a facilidade adaptativa das agendas políticas de certas ciências (como a sociologia) em comparação com outras (antropologia) é um factor determinante, mas Pina Cabral refere também a função de autopromoção desempenhada pelas ciências sociais juntos das entidades empregadoras nas últimas décadas: a formação académica é um produto, e algumas são mais passíveis de passarem no teste da economia de mercado do que outras, tanto por motivos ideológicos como propagandísticos. O lobby político, académico e institucional da sociologia tem vencido até agora a luta pela credibilização social da ciência, em detrimento da antropologia: a falta de perspectivas dos alunos preocupa o autor. Pina Cabral critica ainda a escolha feita pela maioria das faculdades portuguesas, ao darem preferência a uma formação antropológica orientada para a museologia etnológica. Trata-se de um campo relativamente árido em ofertas de emprego e que, para além disso, contribui para a propagação do estereótipo antropológico mais comum e para a continuidade de uma divisão teórica obsoleta entre antropologia ‘at home’ e ‘do exótico’, afastando portanto logo à partida muitos alunos de possibilidades profissionais mais variadas e com um olhar para a realidade menos fraccionado.
            Fica claro, depois de ler este texto, que a antropologia teve e tem muitos contributos a dar na compreensão do mundo, bem como na actuação prática para a sua transformação. Resta solucionar a luta interna dentro da própria ciência: entre a concepção saudosista mistificadora do objecto de estudo considerado ‘original’ e ‘verdadeiro’ da antropologia, e um olhar menos reducionista que considera a totalidade da realidade social como objecto de estudo viável. Acima de tudo, é importante dirigir um olhar histórico para as ciências sociais que contextualize e desmistifique os preconceitos contra as outras ciências, principalmente devido à tentação de colocar a nossa área disciplinar acima das outras em termos da sua importância absoluta. 

Bibliografia: Cabral, João de Pina (1998), A antropologia e a questão disciplinar, Análise Social, 149 (5), pp. 1081-1092.

domingo, 16 de setembro de 2012

quinze do nove

Cheguei à Praça. Vim num metro a abarrotar de gente como nem em Paris à hora de ponta tinha visto. A linha de Sintra saiu comigo do sofá e veio até Lisboa em peso, de comboio. Muitos deles acompanharam-me desde Queluz até à Praça do Povo, como alguns já lhe chamam. O legado operário sente-se no ar, o nome do socialista José Fontana ouve-se nas conversas entre pais, filhos, netos, avós, activistas, estudantes, metaleiros e trabalhadores. Sinto que hoje é um dia de mudança.

A marcha já tinha começado quando eu cheguei: eram 17h10m, vinte minutos antes da hora marcada para o início da manifestação. Isto nunca acontece. Mas aconteceu ontem. Já tinha acontecido em Maio de 1974, disse um repórter que teve a sorte de presenciar o primeiro Dia do Trabalhador da democracia portuguesa.

Íamos ainda na praça do Saldanha quando pessoas começam a receber telefonemas de amigos que já tinham chegado à Praça de Espanha. «Nem os repórteres nem a polícia conseguem delimitar o princípio e o fim da manifestação. Anda tudo a fazer previsões, mas o que se passa hoje em Lisboa nem no 11 de Março do ano passado. Nunca vi tanta gente junta». É verdade: as ruas que estão cortadas ao trânsito são mais do que as previstas, porque o fluxo de pessoas é tão grande que os carros são forçados a parar durante minutos seguidos para deixar passar os manifestantes, que continuam a chegar.

A única coisa que me saiu da garganta foi «Isto está bem composto». Quando chego a casa e leio em vários sítios que nunca desde o fim da ditadura se viu uma tão grande e heterogénea mobilização popular, rio-me do meu eufemismo. Isto foi provavelmente a maior demonstração de poder popular a que já assisti desde que nasci. E algo me diz que não será a última.

Foi um despertar colectivo. Foi mais do que um grito de indignação, foi uma ordem. Foi um comando, foi uma moção de censura popular. Não foram muitas as vozes que encheram as praças e as ruas do país ontem, não, não podemos deixar que nos digam que foram muitos os pés que encheram as avenidas e as estradas portuguesas. Não foram muitas, foi apenas uma voz. E é por isso que ontem abrimos todos em conjunto as portas a um novo ciclo na história da participação cívica portuguesa. Ontem vimos o nosso poder, e fizemos ver. Ontem aprendemos e ensinámos. Aprendemos como a diversidade é capaz de nos unir na semelhança e na diferença. Ensinámos como é isto mesmo que eles devem temer. Acabou o tempo de ouvir, chegou o tempo de sermos ouvidos. Acabou o tempo de sermos governados, chegou o tempo de governarmos. Pegaremos nas rédeas e reconquistaremos as nossas vidas.

«15 de Setembro sempre, Troika nunca mais»

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Há algo de muito perturbador na chegada do fim de Agosto

Esse algo é a confirmação de que o Verão, tal como tudo o que sabe bem, não dura sempre.

sábado, 31 de março de 2012

Arte e Sexismo



Borgore faz música. No entanto recuso chamar-lhe músico, e muito menos artista. Não sou daquelas pessoas que vê um quadro de nus e afirma peremptoriamente que “aquilo não é arte”. Pelo contrário, sou mais daquelas pessoas que vê uma fotografia chocante, visualmente (ou eticamente) perturbadora, e lhe dá o benefício da dúvida. A Arte, se é que se pode escrever arte com letra grande, como se fosse algo unânime ou elementar, deve ser relativizada. Uma escultura dadaísta faria sentido na Itália renascentista?

Tal como é insensato pensar a arte como uma coisa intemporal e incontroversa, é igualmente errado admitir que tudo seja arte. O que Franz Marc fez com os seus cavalos vermelhos e azuis foi precisamente uma crítica à sociedade da época, misturada obviamente com alguma moral consensual nos círculos intelectuais do expressionismo alemão. Ainda assim, o que na minha opinião ressalta na verdadeira obra de arte moderna e contemporânea é precisamente a capacidade de contradição. De quê? Fácil. Da moral dominante. Dos preconceitos manifestos e latentes. Do pensamento linear característico do senso-comum. A arte é, pois, quase sempre, uma expressão original de moralidade.

O artista ocupa uma posição privilegiada. Tem a oportunidade de se colocar em questão, face a si, à sua obra e aos seus esquemas de pensamento. O que se vê na indústria musical de hoje é, pelo contrário, uma exploração até ao absurdo dos preconceitos e estereótipos dominantes na sociedade ocidental. O tratamento da mulher como objecto sexual é uma das constantes dos singles produzidos às três pancadas, e mesmo de algumas bandas e movimentos que se apresentam como a “resistência” à comercialização musical.

As letras das músicas mais populares entre os consumidores retractam, muitas vezes, as mulheres como seres de natureza dupla: senhoras durante o dia, devoradoras insaciáveis à noite. Este estereótipo em particular dá continuidade à necessidade estrutural de existirem dois tipos de mulheres, facilmente identificáveis e tratáveis. Por um lado, as puras, doces, brandas, devotadas ao casamento, aos filhos e aos sentimentos: o tipo de mulher com quem se casa, portanto. Por outro lado, aquelas que segundo as palavras de muitos homens, “não se dão ao respeito”, ou porque têm uma vida sexual activa e não o escondem, ou porque aparentam ter pela maneira como se vestem, falam ou lidam com as pessoas no geral. Estas últimas são as putas, que no universo masculino apenas servem para satisfazer os desejos mais viscerais da carne, que segundo a própria Bíblia, “é fraca”, e que no universo feminino são estigmatizadas. A sociedade tal como existe precisa de ambos os tipos de mulheres para funcionar, ou seja, para que os homens tenham ao seu dispor mulheres-objecto-sexual e mulheres-objecto-ideal.



Vê-se como tão facilmente a música reproduz esquemas tradicionais de dominação da mulher pelo homem. Hoje em dia, a questão já não passa tanto por um reconhecimento legal da igualdade da mulher perante o homem; o problema afigura-se maior quando tentamos desconstruir o senso-comum machista, presente em todas as áreas de socialização, e profundamente enraizado no subconsciente colectivo. Há mesmo uma assimilação inconsciente por parte das próprias mulheres da sua inferioridade, embora elas não pensem nela desta forma e até a justifiquem, afirmando-se elas próprias como representantes da minoria respeitável. Muitas vezes, são as mulheres as primeiras a rotularem-se umas às outras com adjectivos que expressam esta natureza extremamente reducionista do mundo: ou se é isto, ou não se é.

Dito isto, é fácil compreender por que razão me parece um insulto à arte chamar Borgore artista ou músico. O que ele faz é um simples papaguear da “cantiga” que lhe foi cantada toda a vida. Nenhum dos seus versos convida à reflexividade ou demonstra qualquer tentativa de autoquestionamento. Para ele, o mundo é o mesmo hoje e sempre, as suas palavras são apenas divertimento, e a política só se faz no parlamento.
Apesar de achar que nem todo o artista é obrigado a comprometer a sua arte com posicionamentos políticos, acho que qualquer um deve saber reconhecer que eles estão inexoravelmente presentes na sua obra. Borgore assume-se, portanto, como um típico macho sexista… versão século XXI.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Uma S.O.P.A. para os pobres

Divulguem. Contra a ACTA. Por uma Internet livre.


domingo, 27 de novembro de 2011

Deve ser do choque

Segundo fontes anónimas, o meu pai disse isto em conversa com o homem que lhe está a fazer as obras na casa (que costumava ser minha):
- Eu sou viúvo, portanto a casa é minha por direito.

Para quem não sabe, os meus pais nunca foram casados. E mesmo que tivessem sido, separaram-se há quase 10 anos.

O meu pai está um bocadinho confuso.

sábado, 5 de novembro de 2011

Dois


- Ninguém me sabe explicar o que é a felicidade – resmungou Tiago, impaciente com o novelo de esparguete à bolonhesa poisado num prato à sua frente. A mãe estava a ficar enervada com a fúria do filho, que tentava apanhar os fios de massa sem fazer nenhum esforço aparente por suavizar o embate do garfo na loiça, provocando um ruído estridente e desafiando todas as cabeças no restaurante a virarem-se na sua direcção. Este efeito desaparecia depois das pessoas perceberem que não passava de uma criança a ser exasperante, e as atenções anteriormente dispensadas ao miúdo voltavam-se para a respectiva mãe, vestida com bom-senso num espaço cheio de fatos elegantes e boas maneiras, cada vez mais embaraçada com a terrível falta de decoro do filho.
- Tiaguinho, já lhe disse que comesse sossegado. Se conseguir comportar-se como deve ser, a mamã vai explicar-lhe tudinho acerca da - como disse?
- Da felicidade, mamã.
Ela olhou para o filho ao seu lado. Não percebia de onde vinha aquele estranho fascínio por coisas tão esquisitas. Seria das bandas desenhadas? Por via das dúvidas, decidiu, assim que chegassem a casa iria pô-lo a dormir no quarto da ama e dirigir-se-ia ao quarto dele. Pegaria em todos os exemplares de revistas e livrinhos tolos que conseguisse encontrar e pô-los-ia em cima da laje do quintal para que fossem levados de manhã pelas criadas, juntamente com o resto do lixo doméstico. A partir dali seguiria estritamente os conselhos do Dr. Martins relativamente às leituras indicadas a um rapaz como Tiago. «Introduza lentamente os clássicos da literatura, portuguesa e estrangeira; comece com pequenos sonetos de Camões e vá aumentando a exigência. Talvez daqui a três meses já lhe possa mostrar o primeiro ensaio filosófico. Tenha sempre presente que é necessária uma cultura da exigência, acima de tudo o mais. Lembre-se disso, e o menino será um génio.». Ela não se tinha esquecido desta conversa.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Saber perdoar.


Aqueles que me fizeram sofrer não são, nem nunca serão, indiferentes para mim, pela simples razão de termos algo em comum que dificilmente compete com gostos musicais semelhantes ou ideologias compatíveis: a certeza de um passado partilhado. Essa certeza prender-me-á para sempre a estas pessoas, pois nunca serei capaz de as esquecer. Isso torna-me incapaz de fingir que elas não existem, o que até pode ser verdade na medida em que não as deixo entrar na minha vida da mesma maneira que deixava (isto é, sem dúvida, sensato), mas é também falso, tendo em conta que elas podem não existir na minha vida, mas sei que estão vivas, e que vivem sem mim, rodeados de outras pessoas… Mas, mais importante que tudo isso, elas já fizeram parte da minha vida, e é o tal passado do qual eu não posso (nem devo) esconder-me, que faz com que a única solução para eu conseguir viver comigo mesma, com os meus erros e com os erros dos outros, seja aprender a perdoar, e ainda mais importante do que seguir em frente é conseguir lidar com aquilo que sinto de maneira a que, para me confortar, não precise de mentir a mim mesma dizendo que certa pessoa me é indiferente quando, na verdade, está longe de o ser. O desprezo pode resultar com quem nunca me desiludiu, mas nunca com pessoas em quem confiei. Desta forma estou a falsear a realidade, a atribuir importâncias falsas a eventos que me marcaram. Para conseguir sentir-me bem com o meu passado, o que tenho de fazer é encarar a realidade bem de frente, e para isso não basta chegar à “brilhante” conclusão de que me magoaram. Saberei que atingi o meu objectivo quando, um dia, me encontrar na mesma sala com o meu pai, a minha avó ou o Henrique, e for capaz de admitir para comigo mesma que me sinto mal, que tenho borboletas no estômago, que quero sair dali, mas que, apesar de tudo isso, também sei que tenho de ser superior e ir ter com eles, cumprimentá-los educadamente, e mostrar-lhes que não têm de derrubar nenhuma barreira para chegarem até mim, pois eu já baixei todos os muros defensivos. Já não tenho nada a esconder, posso dizer-lhes que tenho medo, que sinto vontade de chorar, que gostava que as coisas tivessem sido diferentes. Assim, não terão nada a usar contra mim a não ser as minhas próprias palavras, e ninguém me pode abater com a verdade, pois ela está do meu lado, e quando não estiver, admiti-lo-ei. Se tiver de cair, cairei. Mas o peso de saber que não fiz o suficiente já não estará lá.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Um Bairro Qualquer

Algo se estava a passar. Miguel não abria a porta, mesmo depois de a campainha ter tocado ruidosamente mais de dez vezes seguidas. O dedo de Paula doía de tanto pressinar o interruptor. Tinha chegado há cerca de meia hora ao bairro, chamado o elevador, e como sabia que Miguel tinha saído na noite anterior pensou que pudesse estar de ressaca no quarto ou na casa-de-banho, e, por isso, esperou. Ia tocando pacientemente no botão da campainha, esperando cerca de cinco minutos entre cada nova tentativa. Após cinco tentativas falhadas, e depois de ter a prova inelutável de que a casa não estava vazia, pois ouviu um baque surdo lá dentro, na madeira do soalho, muito perto da mesa de pinho escura que ela sabia estar ao lado da porta, Paula começou a insistir mais, aumentando a frequência dos toques para dois ou três a cada cinco minutos, até que finalmente ouviu um gemido carrancudo do outro lado.
- Pára, porra. Já vou.