Foucault escreveu acerca da divisão disciplinar no seio
das ciências – particularmente, das ciências sociais – dizendo o seguinte: "The
disciplines characterize, classify, specialize; they distribute along a scale,
around a norm, hierarchize individuals in relation to one another and, if
necessary, disqualify and invalidate." (Foucault, 1975/1979, p 223). Fiel
àquele que é o foco teórico do autor, isto é, as desigualdades sociais e as
relações de poder que elas servem, a sua visão da especialização científica é
coerente com o papel que atribui às instituições sociais, de entre as quais a
ciência não parece escapar incólume. De facto, a ciência é uma actividade
social, produzida por seres humanos, sendo portanto um campo de combate tal
como qualquer outro campo social.
No contexto português, qualquer estudante das ciências
sociais e humanas há-de ser confrontado, na sua trajectória académica, com a
realidade do monopólio científico-institucional detido pela sociologia enquanto
disciplina científica, em detrimento de outras áreas como a ciência política e
a antropologia. Isto é visível através de uma simples análise dos currículos
lectivos, dos autores citados para as unidades curriculares, e até mesmo da
área de proveniência dos professores das disciplinas anteriormente mencionadas:
como em todos os campos sociais, também na ciência as diferentes áreas estão
conotadas a lugares-comuns, preconceitos ou definições apriorísticas daquilo
que servem e de qual é a sua utilidade prática.
Aqui, a sociologia tem saído claramente como vencedora: o
discurso reinante é o da versatilidade dos sociólogos, a sua fácil adaptação a
quase todos os contextos empresariais, o seu ‘holismo inerente’, a sua
utilidade indiscutível (utilidade, para quê e para quem, já é mais discutível).
Já os politólogos estão por definição confinados ao estudo das instituições
políticas e dos movimentos sociais, ao passo que os antropólogos dificilmente
se afastam, aos olhos do resto do mundo, da imagem de “estudantes do exótico”,
estereótipo que no entanto já desde a primeira metade do século passado se vem
negando com o surgimento de estudos antropológicos em países ocidentais e em
contextos urbanos. A definição do papel da antropologia no seio das ciências
sociais, bem como a hegemonia da sociologia e dos sociólogos no panorama da
especialização disciplinar, é, pois, assunto de importante esclarecimento, que
Pina Cabral aborda no artigo “A Antropologia e a Questão Disciplinar” (1998).
Para o autor, o que despoletou a
escrita deste artigo foi não apenas a genuína ignorância de alguns (entre eles,
de certo, estudantes) relativamente à história e à contribuição da antropologia
para todas as ciências sociais, mas muito mais o “corporativismo descarado” de
cientistas tão importantes, informados e influentes como Anthony Giddens, na
afirmação que fez acerca da antropologia, que por oposição à sociologia
constitui “an evaporating subject matter”, tendo pouca relevância na sua
originalidade metodológica e teórica. Em si, esta afirmação incorpora todos os
preconceitos contra a antropologia que circulam dentro e fora da academia, e é
tão mais gravosa por ter sido feita por um dos académicos mais internacionais
da actualidade que, ironicamente ou não, é sociólogo.
Para desmontar estas acusações, e
fazendo uma defesa crítica da antropologia, o autor baseia a sua argumentação
em cinco problemáticas: i) a história da disciplina; ii) a evolução da definição
do seu objecto de estudo e as suas causas; iii) a originalidade
teórico-metodológica e o valor da sua contribuição para as outras ciências
sociais e humanas; iv) a velha querela metodológica entre análise quantitativa
e qualitativa; v) a profissionalização da disciplina e as suas consequências
dentro e fora da academia. O problema do lobby
sociológico é transversal a todos os pontos abordados.
A contextualização histórica da
antropologia é fundamental para perceber o estereótipo das ‘sociedades
primitivas’, que são sempre conotadas como objecto de estudo primordial – se
não único – da disciplina. Para já, Pina Cabral lembra que, etimologicamente, a
palavra ‘antropologia’ designa um objecto de estudo que reflecte o desígnio
original da disciplina: ser um “projecto científico utópico” que agregasse
todas as ciências do ‘homem’ (1998:1083). Depois da absoluta especialização das
ciências sociais, ainda na primeira metade do século XX, este objectivo
tornou-se obsoleto e irrealizável. A busca de conhecimento acerca dos povos
colonizados pelas potências ocidentais, nomeadamente pelos estados nacionais e
por agentes económicos privados, proporcionou à antropologia uma oportunidade
de amadurecimento e desenvolvimento; no entanto, esta procura estava à partida
minada por interesses não só económicos, mas também político-ideológicos de
manutenção da supremacia europeia nas colónias. A desacreditação da perspectiva
evolucionista do desenvolvimento humano pôs em causa o objecto de estudo da
antropologia ao desconstruir o sujeito de estudo: será legítimo o conceito de
‘sociedades primitivas’? Desde sempre a antropologia aplicou os seus métodos e
desenvolveu teorias em diversos âmbitos, pelo que o autor afirma,
justificadamente, que a divisão do trabalho científico segundo temáticas de
estudo não faz sentido para a antropologia ou para qualquer outra ciência
social.
Quanto à acusação que postula a
banalidade metodológica da antropologia, Pina Cabral enumera uma série de
aspectos nos quais a antropologia foi pioneira, nomeadamente para o
desenvolvimento de teorias e métodos de estudo qualitativos hoje totalmente
açambarcados pela sociologia e naturalizados pelos sociólogos na sua prática. O
autor denuncia também o branqueamento histórico de Giddens, que decide ignorar
o contexto científico de autores como Engels, Durkheim e mesmo Bourdieu, que
não se assumiam exclusivamente enquanto sociólogos – ou porque na sua época a
divisão científica ainda não estava concretizada, ou porque a sua formação foi
multidisciplinar e holística.
A antropologia foi, como já se
referiu, pioneira na formulação e aplicação de metodologias qualitativas. Estas
reflectem uma maior preocupação com a diferenciação étnico-cultural – é
possível argumentar, como faz Pina Cabral, que este foco menos quantitativo permite
um maior afastamento face às necessidades dos poderes institucionais, ao
contrário de disciplinas como a sociologia ou a ciência política. No entanto,
não é verdade que historicamente a antropologia não tenha sido conivente com a
legitimação de certas visões do mundo – nomeadamente etnocêntricas, com
propósitos imperialistas e de justificação da supremacia da raça branca;
segundo o autor, a principal diferença entre a antropologia e a sociologia de
hoje, nomeadamente no que diz respeito à sua adaptação institucional, deriva de
uma prioridade da primeira em estudar os grupos e as sociedades do ponto de
vista dos próprios, e não a partir de uma “agenda política e social definida a
partir dos interesses dos que controlam os mass
media e as agências governamentais” (1998:1088). Daí a importância de
colocar a questão “Útil para quem? E sobre que circunstâncias?” antes de
classificar a antropologia como uma disciplina com pouca aplicação prática por
oposição à sociologia. Apesar desta defesa das virtudes do qualitativismo, o
autor admite que a contextualização dos ambientes de estudo em termos
estatísticos é importante para garantir a solidez das observações e das
conclusões retiradas. Descodificamos assim mais um mito da antropologia: o de
que os antropólogos não trabalham com números ou que os acham dispensáveis.
Por fim, coloca-se a questão da
profissionalização da antropologia. Mais uma vez, a facilidade adaptativa das
agendas políticas de certas ciências (como a sociologia) em comparação com
outras (antropologia) é um factor determinante, mas Pina Cabral refere também a
função de autopromoção desempenhada pelas ciências sociais juntos das entidades
empregadoras nas últimas décadas: a formação académica é um produto, e algumas
são mais passíveis de passarem no teste da economia de mercado do que outras,
tanto por motivos ideológicos como propagandísticos. O lobby político, académico e institucional da sociologia tem vencido
até agora a luta pela credibilização social da ciência, em detrimento da
antropologia: a falta de perspectivas dos alunos preocupa o autor. Pina Cabral
critica ainda a escolha feita pela maioria das faculdades portuguesas, ao darem
preferência a uma formação antropológica orientada para a museologia
etnológica. Trata-se de um campo relativamente árido em ofertas de emprego e
que, para além disso, contribui para a propagação do estereótipo antropológico
mais comum e para a continuidade de uma divisão teórica obsoleta entre
antropologia ‘at home’ e ‘do
exótico’, afastando portanto logo à partida muitos alunos de possibilidades
profissionais mais variadas e com um olhar para a realidade menos fraccionado.
Fica claro, depois de ler este
texto, que a antropologia teve e tem muitos contributos a dar na compreensão do
mundo, bem como na actuação prática para a sua transformação. Resta solucionar
a luta interna dentro da própria ciência: entre a concepção saudosista
mistificadora do objecto de estudo considerado ‘original’ e ‘verdadeiro’ da
antropologia, e um olhar menos reducionista que considera a totalidade da
realidade social como objecto de estudo viável. Acima de tudo, é importante dirigir
um olhar histórico para as ciências sociais que contextualize e desmistifique
os preconceitos contra as outras ciências, principalmente devido à tentação de
colocar a nossa área disciplinar acima das outras em termos da sua importância
absoluta.
Bibliografia: Cabral,
João de Pina (1998), A antropologia e a questão disciplinar, Análise Social, 149 (5), pp. 1081-1092.